O projeto Multitude por exemplo, nasceu de um trabalho pessoal, a instalação Multidão, na exposição Luz da Luz, no Sesc Pinheiros (2006), curada por Ana Barros, outra artista bastante etcétera. Claro, o projeto tem influência do conceito de 'multidão' de Antonio Negri e Michael Hardt, uma forma de entender as multidões em relação a mecanismos biopolíticos capitalistas. Ou seja, é um objeto de pesquisa que, ao encontrar referencias correlatas, textos, atitudes, imagens e obras de outros artistas, se transforma quase que 'naturalmente' em exposição, por explicitar o contemporâneo. Foram cruzamentos com obras de artistas como Lourival Cuquinha, Gabriela Golder, Ligia Pape, Leandro Katz e Dora Longo Bahia que impulsionaram a existência de uma exposição – da qual omiti minha própria peça, denominada Multidão, exatamente por ver que meu trabalho já acontecia na exposição de uma outra forma. O que motivou o projeto foi então um processo de confluência criativa em torno de um ponto comum, e não exatamente uma estratégia curatorial. Para fazer isso acontecer, foi pensado um modelo experimental de curadoria, em que uma equipe curatorial de plantão passou a receber diariamente artistas dos mais diversos circuitos que tivessem trabalhos relacionados com o conceito de multidão, e que foram sendo incorporados progressivamente ao conjunto inicial de obras. Essa curadoria funcionou no formato de um atendimento público, buscando trazer trabalhos e propostas em consonância com o tema.
É o resultado de um pensamento um tanto filosófico, um tanto sociológico e um tanto artístico que buscou reverberar as tensões percebidas na sociedade, em diálogo com as reflexões políticas na arte. Foi talvez o primeiro projeto onde os envolvidos perceberam o quanto os limites entre curadoria e ação artística estavam perdendo o sentido, seja na forma como cada inserção de novos artistas acontecia, seja na forma como as reflexões críticas e filosóficas se adentraram no espaço expositivo, em igual teor entre arte e pensamento, misturando linguagens, processos e modelos criativos. No projeto, houve a participação indistinta de artistas e pensadores como Antonio Negri, Ricardo Basbaum, Lucio Agra, Peter Pál Pelbart, Claudia Andujar, Davi Kopenawa, Suely Rolnik e Maurizio Lazaratto. Este último, por exemplo, teve tanto a exposição no seminário de suas ideias em torno de trabalho imaterial, tema sobre o qual Lazaratto é das maiores autoridades, como uma instalação artística em torno do conceito de animismo maquínico, tal como pensado por Felix Guattari, realizada em conjunto com a artista grega-alemã Angela Melitopoulos.
Esse tipo de transversalidade, um atravessamento entre campos, meios, métodos e pontos de fala, encontra ressonância em exposições históricas. Para os que observam a relação entre o conceito de imaterialidade e as mídias eletrônico-digitais, é reincidente a influência marcante da exposição Les Immatériaux, curada pelo filósofo Jean-François Lyotard em 1985 no Centre Pompidou em Paris, que colocou foco na forma como as novas tecnologias da informação dão forma à condição humana. “Ao invés de escrever um livro, Lyotard fez de suas ideias filosóficas um labirinto na exposição”, comenta Hans Ulrich Obrist, que assume a exposição como uma das maiores influências em sua carreira.
Segundo o filósofo e etnógrafo Pedro Cesarino, a percepção de artistas, antropólogos e outros intelectuais convergem no âmbito criativo, pois "todos são criadores não exatamente por se imaginarem ou não como colagistas, mas por serem os responsáveis por identificar os dilemas do contemporâneo e por projetar outros mundos possíveis" (2013).
Obrist, conhecido no meio artístico pela sigla HUO, hoje a maior celebridade dentre os curadores (acreditava que poderia escrever um texto sem mencioná-lo), comenta que, pelo fato de ser suíço e ter em sua formação a forte presença das experiências Dadaístas e do Cabaret Voltaire o faz lembrar o quanto foram experiências conduzidas exclusivamente por artistas, que produziram um impacto na forma como a arte era organizada. Os artistas introduziram formas mais anárquicas de apresentar seus trabalhos, em consonância com as condições e conceitos envolvidos, num exemplo que hoje se repete no modelo dos artist-run spaces, ou das exposições preparadas exclusivamente por artistas – um contexto particularmente transformador nos anos 1960 em Nova Yorque, que se repetiu de forma potente nos anos 1990 em Londres e que talvez esteja se proliferando hoje em capitais menos abastadas, como São Paulo, Budapeste, Istambul, Liubliana ou Atenas.
Para Celina Jeffrey, autora de uma das várias recentes publicações entituladas O artista como curador, os artistas introduziram novas formas de pensar e falar sobre a cultura artística, dentre elas métodos antes associados à curadoria Esse campo de atuação, um tanto artístico, um tanto organizacional, passa a ser totalmente interligado, autofágico por vezes, permeado por propostas inclusive conceituais. É um consenso entre muitos curadores que a emergência das instalações, inicialmente em grandes exposições como a Documenta ou a Bienal de Veneza, levou a uma aproximação de procedimentos entre o 'instalar' a criação de um ambiente que potencializa a obra ou um conjunto de obras, em seus vários recursos expressivos.
Cabe perguntar: o artista já seria um curador, em essência, na medida em que organiza ideias, seleciona, escolhe, faz pensar, faz ver, direciona atenção ou provoca deslocamentos?
As definições dos curadores mais celebrados de todos os tempos, como Harald Szeemann e HUO, apontam para o fato de que o curador atua como mediador entre objetos e ideias, colocando diferentes esferas culturais em contato, empregando zonas de experimentação e criatividade, fazendo com que uma exposição seja um abrir de portas e funcione como uma ferramenta artística (HOFFMAN, 2017). Essas são também definições que podem ser aplicadas a muitas práticas e convicções associadas a artistas.
Assim como o termo arte se expande (uma afirmação atribuída a Joseph Beuys), o termo curadoria também se alarga e comporta novas experiências e definições. Há riscos nessa expansão semântica – ou: “há uma ressaca de todas essas coisas na curadoria moderna”, nas palavras de HUO. A curadoria para atividades antes improváveis de serem associadas ao termo agora se travestem de escolhas e aconselhamentos gerais: de sites, de produtos, de textos, de roupas, de etiquetas de conduta, de comida ou da carreira (coaching). Está à venda o serviço de conhecimentos ditos especializados, do saber viver, do saber escolher/decidir situações para a própria carreira do artista. Além de versões mais recentes, como a curadoria de conteúdo e de informação, que afinal começa a fazer sentido na medida em que se reconhece o espaço on-line como de fato uma extensão do espaço público, uma esfera da qual não se pode escapar facilmente.
Tipologias
Claire Bishop chama a atenção para as estratégias do curador freelance que já não é mais uma figura independente, senão uma celebridade perseguida tanto por artistas quanto por galerias, e que age como corretor de influências entre colecionadores, o mercado e de forma dependente dos patrocínios e agências que administram recursos (2007).
Durante o seminário Os Métodos e Materiais da Curadoria (Besides the Screen 2015, em Vitória), comentei possíveis tipologias de curadoria (algumas em tom jocoso) em seus caminhos mais nebulosos, como a sugestão de associação do artista à lógica das bolsas de valores, onde o mercado (ou o curador) aposta naquele/a que vai dar mais certo. É um processo que não estimula a experiência, não se viabilizam obras de maior risco, e se pensa na arte ou no artista como gerador de commodities.
Considerando a competitividade da carreira curatorial “já afeita a estilos de assinaturas e artimanhas”, conforme comentado por Bishop (2007), vemos se repetir também o padrão de disputas de forças, em curadorias que buscam mostrar poder por meio da exibição de obras de coleções privadas, em troca de supostos benefícios ou intercâmbio de influências, mas com pouco comprometimento com o artista em si.
Vemos curadorias bem intencionadas aplicando, por sua vez, um método típico de ilustração de ideias, em que o curador busca uma forma de se valer dos artistas para validar ou, de fato, ilustrar ideias pré-concebidas. Não que esse modelo seja realmente um problema, mas geralmente está pautado por um impulso demasiadamente egocêntrico. São atitudes instrumentais que parecem deformar e reduzir ideias a mecanismos bastante questionáveis.
E vemos e sofremos curadorias que buscam otimizar esforços por meio do mínimo diálogo (ou seja, quanto menos contato melhor), quando o artista é considerado uma peça indesejável no processo e é meramente tolerado, visando a perspectiva de uma carreira de economia de esforços.
Haveriam outras tipologias, algumas mais ou menos provocativas. Nem tudo é carreirismo ou busca do glamour ou em torno do jet-set internacional. Em publicações mais críticas, que começam a se somar nas livrarias e em debates que contrariam o hype das feiras de arte (que explicitam sobretudo o 'quem é quem'), vemos uma ponta do que seria a idealização da prática curatorial: envolvendo diálogo, potencialização de processos, valorização das obras, projetos e pesquisa dos artistas em conjunção com a própria curadoria. Seriam perspectivas de fato interessantes a valorização efetiva das relação de respeito e aprendizado mútuo entre curador e artista, o que requer no mínimo doses mais generosas de deferência e maior compromisso.
Curadoria expandida
Os pesquisadores Daniel Jablonski e Isabella Rjeille em entrevista com o etnógrafo Pedro Cesarino comentam os processos simbióticos entre etnografia e curadoria em referência a outra 'figura de linguagem', o artista como etnógrafo, um conceito já bastante disseminado, postulado por Hal Foster em O Retorno ao Real. A suposição dessa associação é a mesma buscada ao longo deste texto: a premissa de validação do 'curador-autor' e das relações produtivas que se estabelecem nesse âmbito. Com a globalização, “o curador etnógrafo desponta no fim dos anos 1980 como o responsável pelo mapeamento e pela apresentação ao público da produção artística dos confins do planeta” comentam Jablonski e Rjeille. Seria o curador etnógrafo um “mero joguete ideológico de um Ocidente em busca de novos mercados culturais ou, ao contrário, a emergência de uma real afinidade entre duas práticas com um fundo simbólico comum?” (2013, p. 5.). E ainda, a respeito da própria premissa: “O etnógrafo que deseja se confrontar à ‘escritura’ alheia, seja ela falada, cantada ou escrita, tem necessariamente de assumir a sua parte de criador?”
Sejam ou não essas questões típicas da visão ocidental, ou de um pós-colonialismo 'eurocentrizado', as respostas de Pedro Cesarino afirmam a necessidade de se "compreender como o pensamento ocidental (e em especial a antropologia) de fato se transformou a partir do horizonte de colaboração que então se estabelecia entre intelectuais e artistas" (2013 p. 25.).
Colaboração tem sido um motor de projetos iniciados com recursos modestos ou recurso nenhum. Nos últimos anos, percebe-se em São Paulo uma série de iniciativas que contornam a dependência de estruturas dispendiosas. No meu campo direto de atuação, cabe mencionar as oficinas em periferias e associadas a centros comunitários conduzidos pelo Labmovel, onde sempre convidamos artistas para atuarem como educadores, em um processo curatorial em extrema proximidade com o convidado. Já participaram desse processo Raquel Kogan e Lea Van Steen, Vanessa de Michelis, Denise Agassi, Virgínia de Medeiros, Fabi Borges, Mario Ramiro e Bruno Schultze, Claudio Bueno, Fernando Velázquez, Jaime Lauriano, Fernão Ciampa e outros .
Mais recentemente venho me dedicando aos projetos coletivos realizados na Da Haus, uma espaço gerido por artistas, onde desenvolvemos programas nitidamente não-hierárquicos, onde a ideia de curadoria é bastante aberta e distribuída. Os projetos reincidentes e de caráter 'permanente' da casa (nunca sabemos quando exatamente poderá ocorrer o próximo) abordam meios muito diversos e comportam chamadas abertas para performances, exposições, mostras de cinema, experiências sonoras e outras possibilidades ainda em exploração. A Da Haus atua a partir da colaboração entre os integrantes e com espaços sediados na região ou com afinidade de atuação.
As performances e as exposições são os projetos mais complexos. Foram realizados duas edições do Maratona de Performances em fevereiro de 2016 e março de 2017. Cada um dos eventos envolveu cerca de vinte performances autorais apresentadas nos espaços da casa ao longo de um dia.
O formato expositivo acontece na casa principalmente com a mostra FindeArte, onde apresentamos ao público obras que não se enquadram na lógica produtiva vigente, ou seja, trabalhos verdadeiramente em processo, executados pela primeira vez em público, ou que podem ser montados e remontados, testados e experimentados no decorrer da exposição. A primeira mostra FindeArte foi realizada em maio de 2016 e reuniu obras dos integrantes do espaço e também de artistas convidados pelo grupo: Andrei Thomaz, Camille Laurent (como residente), Dudu Tsuda, Duo B, Edouard Fraipont, Eric Mark, Fernando Velazquez, JpAccacio, Lourival Cuquinha, Matheus Leston e contou ainda com performances sonoras de Paulo Beto, Ricardo Carioba e Objeto Preto. Os curadores Ananda Carvalho e Yudi Rafael encerraram o evento com uma fala sobre espaços e iniciativas independentes na arte.
A segunda edição da mostra aconteceu em junho de 2017 e contou com os seguintes artistas: Aaron Fernandes, Alini Santini, Andrei Thomaz, Bella, Bruno Palazzo, Dora Longo Bahia, Eduardo Duwe, JpAccacio, Lucas Bambozzi, Marcelo do Campo, Mario Ramiro, Mauricio Ianês, Mirella Brandi, Muep Etmo, Philip Somervell, Rochelle Costi, Rodrigo Gontijo, Sergio Basbaum, Simon Fernandes, Stefanie Egedy, Thomas Rohrer, Tomaz Klotzel e Vinicius Maffei. Uma performance do grupo Cão (Dora Longo Bahia, M. Ianês, R. Carioba e B. Palazzo), uma banda cuja sonoridade a princípio não cabe num espaço residencial, demarcou o caráter multimidiático e de confluência de linguagens e gerações associado à casa.
O improviso é um dos aspectos que mais caracteriza os projetos da Da Haus (em tempo, um nome herdado de uma cacofonia associada ao dadaísmo), um espaço que valoriza o ideal de se fazer pelo devaneio criativo, de aceitar o risco como oportunidade mesmo de teste e experiência. Novamente, valores que se misturam entre as obras e as exposições mais celebradas pela crítica. Parece que um século depois das movimentações que se ensejaram num ambiente modernista nos anos 1920, temos desafios similares de ruptura. Trocadas algumas bandeiras, há sempre uma militância em pauta para aqueles que não se veem representados pelos mecanismos e sistemas vigentes. É para esse contexto que percebemos, em projetos como os da Da Haus, que os esforços são sempre válidos e recompensadores, mesmo que 'sísificos', mesmo que o terreno continue árido.