Refração de André Severo

Consagração do instante: a imagem avança no escuro; já não nos perguntamos como ela tomou forma ou se sua dinâmica de instauração é apenas o reflexo de alguma vivência esquecida. A existência de um lugar junto à existência das coisas se manifesta em deriva; o espaço já não se estende, mas pode se tornar visível. Pela linguagem a matéria está aberta ao tempo – o real se desdobra. O ambiente já não é o lugar dos corpos, já não nos serve de apoio. No fundo de todo acontecimento existe um ritmo; as imagens se juntam e se separam por alterações regulares e compassadas; uma ordem ignota rege todas as uniões e todas as separações. A imagem que carregamos em nós, visível e suspensa, tensa, iminente, aberta pelo drama do tempo, é reflexo da linguagem que não cabe na língua – isolamento. Cada um de nós é uma fronteira; como cognoscibilidades, as formas que configuramos não são simples objetos – matéria fora da alma – e nem meras afecções psíquicas do sujeito que espelhamos. Não profetizamos sozinhos. Projetamos formas compossíveis no mundo exterior e a recepção destas projeções já não apresenta diferença estrutural em relação aos demais eventos que somos capazes de introjetar – suspensão. Nenhuma rasura. As imagens existem em nós e fora de nós. Mas o que elas expressam quando ressoam em nosso interior? Que nossas certezas nos transformaram em ilhas; e que o oceano daquilo o que não sabemos tornou-se definitivamente extensão. É a extensão – do sujeito, do tempo, do espaço – o que agora nos contém. Somos hoje, mais do que nunca, os lugares e os tempos do acontecimento: consagração do instante


Subjetividade irredutível: tomamos conhecimento das coisas, do mundo e de nós mesmos não somente a partir daquilo o que compreendemos através dos sentidos, mas também daquilo o que nos possibilita este entendimento – percepção da percepção. Não sendo um mero evento cognitivo, o sensível talvez seja apenas uma circunstância, uma maneira de subsistir das formas, a condição do aparecimento da imagem em determinadas situações. As formas do sensível, as imagens que introjetamos e projetamos, dão uma consistência factual à nossa subjetividade – e esta experiência não é, pois, a soma dos acontecimentos ou das afecções de uma substância material livre de sensações ou vulnerabilidades; senão seu reverso –  a consistência menos visível da estrutura física que nos conforma: o corpo não orgânico do princípio imaterial que nos anima. É como se a experiência (ao se tornar sensível e se fazer cognoscível) fosse ela mesma um corpo suscetível aos estímulos sensoriais, um terreno de topologia reversível cuja localização temporal e espacial está para além de nós e dos objetos. De fato, a imagem não possui identidade, não representa coisa alguma, não figura ninguém em lugar nenhum; e sua instauração não semelha ser mais do que a emoção da persistência da iminência, da suspensão momentânea da realidade. O que a imagem testemunha é a queda, a atmosfera rarefeita em volta de nós, a palavra que não encontramos, a memória que esquecemos e distorcemos. Em última instância, o que o sensível revela é que nossa existência, com sua historicidade – com sua imanência temporal e finita – paradoxalmente se projeta numa transcendência que nos ultrapassa. A imagem nos tira de nós ao mesmo tempo em que faz com que nos encontremos; e esta saída de si para voltar a si – intercâmbio entre o dentro e o fora, entre o próximo e o distante, entre o agora e o outrora – é o estado de deriva em que resguardamos nossa intuição: subjetividade irredutível.

Congruência do sensível: substância simples, acessível e incorruptível – embora sujeita a alterações e evoluções –, o sensível é o liame do mundo. Seção independente que ajuda a compor o todo dentro da estrutura maior de assimilação da existência; os vínculos que o sensível proporciona não são exclusivamente de natureza física e nem espiritual. É somente através das imagens que nossos sentidos são capazes de inferir que a realidade (ou o que entendemos por realidade) chega até nós como uma forma de unidade – mas, esta unidade (ou fantasia de unidade) nunca nos é revelada apenas através do contato físico ou somente pela essência imaterial. Somos constantemente (e cada vez mais) afetados por coisas, ideias, contextos, situações, sem que estejamos fisicamente em contato com elas – e são as imagens que introjetamos que tornam possível que vivenciemos uma relação com o tempo (e com o espaço) que é ao mesmo tempo material e imaterial, coerente e antilógica. O sensível nos atravessa como um sopro; e quando somos transpostos pelas imagens podemos ter a ilusão de que elas são capazes de nos tirar, ainda que momentaneamente, das armadilhas da retórica. Distorção da percepção: a imagem, assim como a palavra, possui equilíbrio instável e subsiste na iminência da queda. Graças às particularidades do sensível, no entanto, esta eversão nunca é fatal; a imagem, diferentemente da matéria extensível, jamais está inerte e tende a ser flexível, a multiplicar e adaptar suas formas. E isto significa, simplesmente, que o sensível extrapola a instância da pura interioridade e da plena exterioridade; as imagens – como um aparelho estático de indução eletromagnética que transforma um sistema de correntes variáveis em um ou mais sistemas de mesma frequência (mas de intensidade ou tensão geralmente diferentes) – configuram-se como os derradeiros conversores que permitem a incorporação do espírito e a espiritualização da matéria: congruência do sensível.

Superfície do espelho: tendemos para o sensível. Procuramos um estado surgido da imagem; uma força germinativa fora língua que nos capacite a circular pela topologia de continuidade intercambiável que une o fim e o início – dimensão da irredutibilidade da imagem em relação ao lugar da percepção. O sensível existe, antes de tudo, fora de nós, de nossa consciência; a imagem está no espaço infinito no qual se localizam e se movem os astros, na atmosfera que envolve nosso planeta, na extensão das faces de nossos corpos, na área reflexiva de nossos espelhos. O relacionamento do humano com o sensível se dá a posteriori. Nos nutrimos de imagens; projetamos conceitos simbólicos e experiências sensoriais, mas a gênese do sensível não tem base nos fenômenos mentais, emocionais ou da psique – excipiente de toda experiência imaginativa, cognitiva ou psicológica, a imagem traz conceitos simbólicos simultaneamente consistentes e parafactuais. O que o sensível reverbera, em última instância, é algo que se gera fora de nós, mas que – apesar de não ter natureza relacionada com a parte imaterial que também nos conforma –  é capaz de oferecer informação e dar contornos anímicos para nossas determinações, anseios, desejos, paixões, inteligências e perceptibilidades. Dos estímulos sensíveis e da imaginação parte o impulso criativo; e a criatividade está para a sensibilidade como a linguagem está para a razão analítica. Imagem e palavra, inteligibilidade e sensibilidade se opõem entre duas transcendências e abrem uma passagem. Da continuidade reversível entre o sensível – alicerce do impulso criativo – e o discurso – dispositivo de enquadramento da realidade na linguagem –, se estabelece a origem e a essência da poesia: superfície do espelho.

Presença no presente: existimos mediante o sensível; sobrevivemos graças às sensações, às percepções, ao conhecimento instantâneo que obtemos de nossas intuições: atemporalidade da imagem. A ocorrência do sensível guarda a potência de estar (e de nos projetar) para além do lugar e do tempo da experiência. Na imagem, vivenciamos uma realidade diferente da realidade da linguagem – arquitetada integralmente pelo sensível, esta realidade abre nossa consciência para o parafactual. Sem as imagens que projetamos, todas as construções teóricas e todas as ideias abstratas que acreditamos poder ser compreendidas (e, em última instância, contidas) nos vocábulos de nossas línguas circunscritas, não passam de padrões írritos, preceitos vazios. A existência da imagem é a evidência da possibilidade de existência de algo fora do próprio lugar – fora do próprio tempo. Ser imagem significa estar externo a si mesmo, ser adventício ao próprio corpo, à própria extensão, ao próprio tempo. Como imagem, nós fazemos o mundo; somos os poetas de todas as coisas que experimentamos. Se somos imagem estamos presente – e é nossa presença no mundo o que intersecciona o tempo e o espaço. Não existe história; as temporalidades e as distâncias são sempre relativas – porque, na imagem, o agora é sempre outro. Não há controvérsia, o sensível é uma dimensão não-dimensionável de um tempo que não é tempo e de um espaço que não é espaço – e tanto a extemporaneidade, quanto a não espacialidade são os locais e as circunstâncias da imagem. No centro do sensível, o espaço desaparece, o tempo se devora; experiência de exterioridade absoluta, de atemporalidade absoluta, de deslocamento absoluto: ponto de fuga. Cada presente, com seu passado e seu futuro, guarda a imagem de um instante em que o homem e o mundo coexistem; um único suspiro reúne aqui, diante de nós, o tempo e o espaço como um todo: presença no presente.

Alteridade essencial: para sermos quem somos precisamos também ser o outro. Como seres sociais interagimos e somos interdependentes da diversidade. Substancialmente não existem fronteiras entre nós e o mundo; não há interior ou exterior, não há corporal ou espiritual, real ou parafactual, conteúdo ou continente: nos encontramos ligados, unidos; somos contíguos. Não habitamos a realidade simplesmente – desde que somos, somos a própria realidade e o real (bem como todas as suas frações paraconsistentes) é também constituído por aquilo o que somos. O mesmo ocorre com as imagens: elas são concretas e corpóreas tanto quanto são espirituais e intencionais. O sensível não está nem dentro nem fora de nós, não é nosso teor nem nossa sucessão; as imagens são o que somos, fazem parte de nosso ser – são o nosso próprio ser. E por serem parte de nós, são também parte do mundo, são alheias, são, em essência, outridade. Sendo, pois, o sensível uma das formas de reflexão do outro em nós mesmos, pode-se aceder que as imagens, em sentido tropológico, são espelhos. E se o sensível é um espelho, o que esperar das imagens além de uma visão? Que se despedacem, que se tornem opacas, que precipitem seu esgotamento, que se demonstrem reversíveis, que exponham seus avessos, que sejam invectivas, que se despojem de si, que revelem seus vazios, que se tornem ações. As imagens não representam o mundo e nem a nós; menos do que para revelar alguma sombra da realidade, o sensível nos acomete para nos arrancar da ilusão da existência de um eu-individual. Toda imagem é uma convocação; e qualquer incisão (mesmo que acidental) produzida pelo sensível abre uma brecha não consistente na realidade – e é nesta brecha que o real absorve oxigênio, que o pensamento respira, que a linguagem se evade, que enxergamos o outro. É através do sensível que guardamos o condão de nos percebermos distintos; e assim nos tornamos, ao mesmo tempo, este e aquele, iguais e diversos: alteridade essencial.


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Nascido em 1974, André Severo é mestre em poéticas visuais pela UFRGS. Iniciou, em 2000, ao lado de Maria Helena Bernardes, as atividades de Areal, projeto que se define como uma ação de arte deslocada e aposta em situações transitórias capazes de desvincular a ocorrência do pensamento contemporâneo dos grandes centros urbanos e de suas instituições culturais. Realizou mais de uma dezena de filmes e instalações audiovisuais e publicou, entre outros, os livros Consciência errante, Soma e Deriva de sentidos. Em 2010 foi responsável, também em conjunto com Maria Helena Bernardes, pela curadoria da mostra Horizonte expandido, proposta expositivo/reflexiva que almejou propiciar um maior contato do público brasileiro com experiências artísticas radicais que inauguraram um importante debate sobre as formas de compartilhamento da arte. Ao lado de Luis Pérez-Oramas, foi curador da 30ª Bienal de São Paulo – A iminência das poéticas e da representação brasileira na 55ª Bienal de Veneza. Entre os anos de 2015 e 2017 realizou Metáfora, com Paula Krause, e Espelho, as duas primeiras partes da trilogia de exposições intitulada El Mensajero.  Em 2018, em conjunto com Marília Panitz, foi responsável pela curadoria da exposição 100 anos de Athos, realizada nos Centros Culturais Banco do Brasil de Brasília, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro, em homenagem ao centenário de nascimento de Athos Bulcão. Ainda em 2018, em parceria com Fernando Cocchiarale e Marília Panitz, publica Artes Visuais – Ensaios Brasileiros Contemporâneos pela Funarte, antologia de ensaios que tem como objetivo apresentar um panorama inédito da produção ensaística contemporânea brasileira em campos distintos do saber. Entre suas principais premiações destacam-se o Programa Petrobrás Artes Visuais - ano 2001; o Prêmio Funarte Conexões Artes Visuais; o Projeto Arte e Patrimônio 2007; o Programa Rede Nacional Funarte Artes Visuais 2009; o V Prêmio Açorianos de Artes Plásticas; o Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça - 6ª Edição; o Prêmio Funarte de Arte Contemporânea 2014; o XV Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia 2015; e o Prêmio Sérgio Milliet da ABCA. Atualmente é diretor do Farol Santander Porto Alegre.

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